quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Novidades

Desculpem entrar neste espaço, mas é só para sossegar quem vem seguindo e procura novidades do Miguel. O acesso à net não tem sido fácil e, por isso, não há novidades escritas. O contacto telefónico também não é famoso mas lá se consegue, de vez em quando.

Estão na Mauritânia, na fronteira com o Senegal, mesmo junto ao rio Senegal. Segundo as descrições telefónicas, já passaram o deserto e esta zona já "faz lembrar o nosso Gurúè" (sic). Para quem não seguiu essa odisseia, Gurúè é o local onde estivemos em Moçambique. Já entraram na África Negra, deixando a árabe no deserto.

Penso que amanhã, sexta, começarão a viagem de regresso, em direcção ao Norte, ainda que com algumas paragens.

Dia de chegada?? Ainda uma incógnita... para meu desespero!! :D

Mal cheguem mais textos, prometo que os coloco.

Fiquem bem e obrigada por se manterem ligados!

la salete coelho

domingo, 9 de agosto de 2009

Dia 4 - 4 e 5 Agosto 2009

Partida - 16h30m do dia 4/08/2009.
Chegada - 23h50m do dia 5/08/2009.
Aproximadamente 30 horas de viagem.
Percurso - Marrakech – Chichaoua - Taroudannt – Agadir – Tiznit –Tin-Tin – Tarfaya (Cabo Juby) Fronteira com o Sara Ocidental – Aaiun (“Capital” do Sara Ocidental) - Cabo Bojador – Dakhla.

Auto-estrada até Chichaoua. Depois estrada nacional. Em bom estado.

Distância total aproximada – 1600 Km.

(se clicares em cima dos mapas poderás vê-los em tamanho grande e encontrar as cidades referidas no texto)



5 Agosto 2009
16.30

O Land Rover parece finalmente com vontade. Marrakech despede-se. Decidimos recuperar o tempo perdido. O objectivo é chegar à fronteira da Mauritânia. Fazemos cálculos. Devo-me preparar para uma longa jornada.

Acompanhamos o último troço de auto-estrada. Despedimos-nos em Chichaoua. Navegamos para sudoeste. Em direcção ao litoral. Vou sentado atrás. O terreno permanece plano.
Algumas palmeiras enfrentam-se, inclinando-se, dando as boas-vindas. É o que resta vivo de uma casa de campo. As pessoas não. Ruínas. O vento transporta um sol escaldante.

A planície fica para trás. À frente uma sinuosa estrada de montanha. A velocidade diminui. Nas descidas os camiões quase vão parados. Pesados. A brisa da montanha refresca o ar. Lá no alto. O dorso enorme de um camelo aparece. É o Atlas. Apenas um pequeno vislumbre. O Dorso estende-se, enorme, para o interior.
Nas descidas vamos quase parados. Às vezes. A temperatura oscila bastante. Fresco no alto. Inferno, quando as montanhas nos atraem para nos encurralar nos seus vales. São 20h.

Faltam 1100Km para Dakla. Depois a Mauritânia. Fundeamos em Agadir. O ar do mar pressente-se. Não entramos na cidade, preferimos contornar.

Antes, às 9 da manhã, tínhamos comido um bom pequeno almoço. Café com leite, sumo de laranja, croissants. São agora 23h30m. Durante o caminho só líquidos. Só líquidos. O calor tira-nos o apetite. Agora está fresco, é preciso comer. Jantamos outra vez hariri (sopa com grão de bico, muito condimentada) e tagine (um estufado) num café à beira da estrada.

A viagem continua. Continua.

Hoje é Sábado, dia 8. Em Nouadhibu, Mauritânia, revejo as minhas notas de viagem. Nomes e horas. Distâncias. Estamos em casa da mãe do Ibrahima. As minhas notas viajam ainda. Estrada e nós, sempre. Sem verbos.

Volto a abrir o caderninho preto, de capa mole. É noite. O vidro vai aberto. Até Tiznit vi as mais longas rectas de que tenho memória. Estranhamente – agora em Nouadhibu – recordo a estrada da Tocha, na Figueira da Foz. Esta recta é muito maior. Conduzo agora eu. Sinuosa, lenta, a estrada afasta-se do mar. Lá atrás o Maciel e o Ibrahima descansam. A noite vai ser longa. O Nelson acompanha-me. Somos apanhados pelo primeiro controlo policial. La Gendarmerie Royal. Louis de Funes não teve graça. Estes sim. Pedem-nos os passaportes e perguntam para onde vamos. Sente-se a autoridade em Bou-Izakarn. O Sara Ocidental está perto. O povo Saraoui, a Frente Polisário. Os barcos dos pescadores portugueses apresados. Na década de oitenta a televisão a preto e branco mostrava-os, à chegada. Os armadores pagavam o imposto de pesca a Marrocos. A Polisário afirmava a sua soberania. Cobrava o resgate. É o Povo do Sara, o deserto é deles. O País não. A Argélia empurra-os contra Marrocos, enquanto negoceia fronteiras de paz. A Europa observa. No nosso mapa, de 1968, o Sara ainda se chama espanhol. Depois, em 75, o Generalíssimo cede. El Rei retira-se do deserto. Apanha o ferry em Tânger. Guarda Ceuta e Mellila no manto. Marrocos avança para o deserto. Primeiro com o exército, agora com os fundos de desenvolvimento do mundo “civilizado”. O Sara vai sendo moldado à marroquina. Colonatos, como na Faixa de Gaza. O Povo é independente mas só no Sara de papel.Como Timor. Nos mapas marroquinos nem no papel. É quimera da Grande Marrocos. A República Islâmica da Mauritânia quis também um pedaço mais do Sara. O Presidente Dada caminha com o dedo indicador e crava um pionês verde e amarelo no papel. Da Argélia, das bases da Poliosário, saiu uma expedição de boas-vindas. Cruzam as dunas. O Ibrahima estava na escola, em Nouakchott, a capital. As bombas cravam-se na terra dos mouros. Não no papel. A Mauritânia, afinal, não tem fronteiras com o Sara Ocidental. Afinal são todos peregrinos do grande mar de areia. Mouros e Saraouis são irmãos. Dada retira-se. Afinal a Argélia é perto da capital. Basta saber ler os montículos de pedra que marcam os trilhos. Agora marcam as minas.

De repente, um rasto de sangue marca a estrada. Abro mais os olhos. Uma silhueta está abraçada ao asfalto. Já não dá para travar. Alargo o rodado do Land Rover e passo. Sem lhe tocar. Os outros dois dormem. Eu e o Nelson respiramos de alívio. Era um burro atropelado por um camião. São as dezenas, os camiões. A estrada é estreita, duplico a atenção.

Enfim Tin-Tin. Um dia e uma noite depois do previsto. Novo controlo policial. O mesmo questionário. Sim, somos todos “Professeurs”, o Ibrahima é “Biologist”. O Nelson perdeu, por instantes, a carteira profissional. As máquinas de fotografar não.

Aconchego-me na bagageira do Land Rover – aqui em Nouadhibou, Omar, o empregado doméstico da família de Ibrahima, cola-se às minhas costas. Está curioso. Quando escrevo “Omar” desliza sem ruído para dentro de casa. Antes que fuja levanto a cabeça do teclado e sorrio-lhe. Sorri também. Largo e simpático. Terá percebido? (o meu primeiro ponto de interrogação escrito. Os outros vão-se acumulando).

Aconchego-me na bagageira do Land Rover, as botas castanhas e amarelas colam-se a um vidro lateral. Agora só vejo um céu cinzento. Penso em escrever. Acabo a ver o “Grand Torino”. Mas não continuadamente. As barreiras policiais são cada vez mais intensas. Conto cinco. O filme ainda vai a meio. Sempre que abrandamos fecho o computador e finjo dormir. Ouço as perguntas mas não vejo os Louis de Funes. Mais à frente começa a dança do passaporte. Passo-o ao Maciel. Tento dormir.

Acordo com o barulho das portas a bater. São 8h10m. De um lado está o mar, a ocidente, e as Canárias. Do outro algumas dunas. A luz é filtrada pela fina camada de nevoeiro da madrugada. A falésia é ingreme e recortada. Gil Eanes acena, ao largo. Passará? Mas alguém há-de ficar. Ficou um. No Bojador. A conhecer os mouros do deserto. Recolhe-lo-iam um ano mais tarde. No meu caderninho está escrito “8.10. Deserto. Finalmente. J”. Mas é só um cheirinho.

Chegamos pouco depois a Tarfaya, no Cabo Juby. Pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga. É uma pequena localidade piscatória. O ponto mais próximo das Canárias. Fuerteventura estará a 100 Km para nordoeste. Las Palmas um pouco mais além. Na praia de Maspalomas, na Grande Canária, há corpos deitados, inertes. Desidratados da passagem. Corpos negros. A Cruz Vermelha. Passou na RTP, há poucos anos. Passaram por aqui? (o segundo).

Jilabas e turbantes amarrados em torno da cabeça. Bigodes pretos, de olhar fundo e amarelo. Os pescadores de Tarfaya bebem chá de menta. Que mais poderia ser? À praia chega Salem. Fecha o olho direito para focar. É miope. Não tem dinheiro para óculos. Nem para livros. Tem, isso tem, uma pose calma de intelectual e treze anos. Aqui em Nouadhibou a noite chega. Sente-se o vento do deserto. Está ali em frente, depois do caminho de ferro. O caminho do ferro. Passa vazio, enorme. Saiu do porto, na zona de Cansados. Dirige-se para Zuarate. Na volta traz minério. Ferro. A França colonial talhou um pouco mais de terra para dominar a mina. Agora, junto com o peixe, enche os bolsos dos mouros brancos. A elite da Mauritânia. O golpista é agora presidente. Chama-se Mohamed-Ould-Abdel-Aziz. Ould significa “filho de”. Todos os mouros, brancos e pretos são Ould. Os brancos eram gentes do deserto, gostavam de viver em grandes tendas brancas. Percorriam todo o Sara para comerciar. Faziam razias, arrebanhando escravos. A escravatura foi abolida em 1982. Os escravos vinham de uma África mais negra. Até 1982. Ficaram tanto tempo com os brancos – Hassani- que se transformaram em mouros. Só que pretos. Os outros, como a família de Ibrahima, são Al Pular. Nós dizemos Fula. São da grande tribo de pastores. A sua gente seguiu as pastagens da Costa do Marfim, do Senegal até ao Niger e mais além. São Africanos Negros. O primeiro presidente Al Pular da Mauritânia terá honras de Obama. Na década de 90, os mouros chegaram à conclusão que já havia Al Pular em excesso no exército. Despediram-nos. Em Terhazza, no centro do Sara, o Oásis tingiu-se de vermelho. Os pastores cruzaram o Senegal. Aguardam em tendas brancas de refugiados. Na Televisão, Aziz discursa, em diferido, no Estádio Olímpico de Nouakchott. Os Al Pular podem voltar. A justiça mundial aguarda ainda que alguns generais mouros cruzem o mar. Clandestinos.

Salam está ainda na praia. Fala-nos, porque lhe perguntamos e é um diplomata, dos imigrantes clandestinos. Uma vez viu sair de Tarfaya um barco para as Canárias. Olha-nos complacente. Nunca os viu voltar. Ou chegaram às Canárias ou morreram pelo caminho. Mas não levavam Nigerianos ou Malianos. Só marroquinos.
Em Tarfaya o principezinho está sentado numa pequena miniatura do avião postal. A rota do correio de Exupery passava por aqui. Há um museu que o atesta. Compramos posters. O meu vai ficar bem na parede da casa nova. Mas só quando voltar.

Salem quer ser jornalista. É muito esperto. Vimo-lo a primeira vez quando tomamos o pequeno almoço. Foi ele, num francês muito correcto, quem nos deu as boas-vindas a Tarfaya. No fim rasguei as páginas já escritas de um outro caderninho preto – estava escrito “entrevista ao Padre Pateira. Algeciras. 02 de Agosto” – e dei-lho. Juntamente com um lápis. Um Kit jornalista. O Nelson não lhe quis dar qualquer das suas máquinas.
Daqui até ao Bojador começo a sentir-me muito cansado. Exausto. Durmo o tempo todo. Ao Bojador chego um pouco doente. Começa a Dança do Imodium. Acompanha a dos passaportes.

Chego a Dakhla exausto. São 23h50m. Dia 6 de Agosto. Tomo um banho quente no Cyber Hotel. Duas camas com um cobertor cinzento muito usado. Os lençóis não inspiram confiança. O marroquino de serviço não se dá por vencido. Dormirei embrulhado na manta do Ibraihma. Durmo embrulhado na TAP. Vôo para outras paragens. Amanhã já estarei bem. Incha Alá. Resmunguei como um rapaz mimado todo o caminho até aqui.

De manhã partimos. A Mauritânia é perto. Controlo após controlo, chegamos à fronteira. Atravessamos um cemitério de carros abandonados, numa estrada de trilho marcado pela lixeira. O exército Mauritânio está a almoçar. Aguardamos. Passamos.

Acabou o passeio. Por fim descansamos. E eu também.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Dia 1 - 02 Agosto 2009

Salamaleque (Olá!)

Hoje são, de facto, 5 de Agosto. É meio-dia. O calor aperta, sufocante. Sêco. O corpo suado tinge de humidade a minha pólo. A fronte vai gotejando. Ainda bem que cortei, bem curto, o cabelo. Já não o fazia há muito tempo. Escrevo de Marrakech.

Estou sentado numa esplanada de um tipicamente europeu café - Café La Reférance, em frente ao hipermercado Marajane. Finalmente um momento tranquilo. À sombra. À minha frente, na mesa, um pequeno bule cor de prata repousa numa salva da mesma cor. Dele sai um aroma a menta forte. Encho o copo, elevando o bule. Como vi o Ibrahima fazer ontem em Rabat. Encho outro de água gelada. Um chá no -depois do- deserto. Lembro o filme. Agora é tudo muito diferente. Uma música ligeira marroquina passa no plasma da esplanada. Nada de exótico. Tudo muito
chic. À minha frente, noutra mesa, estão os outros. Bebem chá. O Maciel lê. O Nélson descansa. Não traz as suas máquinas de fotografar. Não há nada aqui para fotografar. O Ibrahim está preocupado. Ao meu lado fala-se marroquino. Expressivo, colorido. As mãos falam mais. Gosto da sonoridade da língua. Gosto das inflexões de tom. Dos erres que saem do fundo do palato.

Escrevo de Marrakech. Chegámos ontem à noite. Hora de jantar. Não deveríamos estar aqui. A nossa estrada já chegou ao Sara Ocidental. À praia de Tin-Tin. A peixada foi já servida. O nosso Land Rover Discovery encontrou outro caminho. De Tangêr a Rabat conduzi eu. De madrugada, depois de esperarmos quas
e duas horas num interminável controlo de papéis e de mercadorias, depois de devagar termos passado o estreito num enorme e lento ferry. A fronteira move-se ao ritmo do barco. Todos esperamos pelo visto de entrada. Fui dos primeiros. Roubando Gibraltar a sua majestade. O meu estreito é agora marroquino.


A bandeira vermelha sacode a estrela verde no mastro. São 14 Km até Tânger (será que Tangerina vem daqui?). Tarik passou por aqui. Provavelmente com os nobres visigodos que o convidaram a instalar-se na Península Ibérica durante quase 700 anos. Tarik está na praia de Tarifa e acena-nos. Veio, desta vez, numa Paterna. Não tem documentos. Desta vez os seus homens não dançam e cantam na praia, enquanto os filhos do assassinado rei dos visigodos foram espreitar, mais a norte, os terrorristas que lhe mataram o pai. Viriam depois ensinar ao mouro o caminho. Como se Tarik não o soubesse. Desde há muito que vem comerciar à Bética, ali pôs-se a sonhar o Al Andaluz.

Em Tânger passam lentamente nos seus carros. O convés vai a abarrotar. Trazem os despojos da batalha. A música é tocada nas buzinas. Alguns impacientes. Matrículas espanholas, francesas, holandesas. Afinal Poitiers é um mito da cristandade. Tarik venceu Rolando e perfuma a europa de kif, de chicha e de suor.

Continuamos a seguir a rota deles, dos imigrantes legais, que agora se vai dividir por Marrocos inteira, ainda que por breves dias e depois de um ano de trabalho. Os ágeis cavalos árabes rolam à nossa frente. Têm matrículas espanholas, francesas e holandesas. O nosso é lusitano. Foi importado, talvez da Alemanha. A matrícula é Portuguesa e começa por K. Talvez tenha sido de um alemão filho de um Sr. Silva. Na Praça Jama Elle Fna todos os cozinheiros das turísticas barracas de sopa, tâmaras e chá se chamam Chefe Silva. Têm outros passaportes com outros nomes. Tantos quantas as nacionalidades dos extasiados turistas ocidentais. No mercado, em breve, se venderão roupas Armani. Mas tradicionais. Armani Hassan. Para meter “ficha” lá em Lisboa. Como antes de nós os ínclitos Infantes. Até que Fernando ficou pendurado de cabeça para baixo, em Fez. “O mouro é que conhecia o deserto”, não é verdade, Sebastião? A batalha dos três reis. Em Ksar el Kibir. Aqui a estação é ainda um pequeno apeadeiro. Filipe II de Espanha mora lá. Já não se ouvem os gritos dos reis. Nem O desejado. Contou-me o Maciel do apeadeiro. Ele que já percorreu Marrocos de autocarro.

O nosso Discovery encontrou outra estrada. Para nos convencer deixou de refrigerar. Está agora num dos milhares de mecânicos marroquinos. Chegamos a 60 à hora. Vínhamos de Sakra al Rhaan. Uma longa fila de vizinhos comerciantes que construiu primeiro uma estrada para depois ver nascer a grande auto-estrada. A ideia, a nossa, era apanhar o caminho de Agadir. A ideia em Sakra era aproveitar a circulação dos que por lá passam. Passam cada vez menos. A pequena vila comercia à sombra da arcada e ao lado da mesquita. A maior parte do tempo sentada à porta. À espera das camionetas
e dos camiões que evitam as portagens. Sakra é sufocante. O mecânico vai-nos desapontando. Almoçamos uma Tagine. Pedimos Brochettes. Quatro. Trouxeram mais. Fizeram bem. A auto-estrada não passa por ali.

Hami confessa-nos em Sevilha que Marrocos está dividida. Os Berberes e os Arrábes (o acento vai bem – Hami fala-nos no seu francês). Os pastores e os agricultores. Nunca se deram bem. Abraão também era pastor. Em outros desertos. Agora já não é só Hami que acompanhamos. Outros se juntaram a ele. Pastores e Agricultores regressam juntos. Separar-se-ão em Tânger. Hami vai para Mekenes, vem do Porto onde trabalha. Rezou ao pôr-do sol, perto de Lisboa, e em Sevilha, ao alvorecer. Pediu-nos, a mim e ao Nélson, para olharmos pelas suas coisas. Desapareceu. Quando voltou a sua fronte vinha suja de terra. Pareceu-me ver o crescente desenhado. As suas cinco malas estavam lá. Os agricultores também. Eram estes que Hami temia?

Em Algeciras as nigerianas contam como atravessaram o estreito, grávidas de muitos meses. Não cedo a escrever ‘grávidas de esperança’. Essa é outra música. Ou será a mesma? Agustina está zangada com o Padre Paterna. Há quatro anos que aguarda os seus documentos. I just want to walk (é como diz work, percebo mais tarde). O pequeno Kelly, seu filho, está às minhas cavalitas. O outro gémeo às do pai. Chegou há dois meses. Primeiro a Melila, vindo de Benim, na Nigéria. Depois a Granada, vindo outra vez de Benim. Mandaram-no de novo à casa partida. Aguardou em Tânger mais do que nós.

Em
Marrekech são 14.09. No Porto também. O mecânico está a acabar. Também eu.

Chokran (Obrigado)


(Fotografias: Nelson Garrido - Fotojornalista/ Público)

Dia 0 – Viagem Porto/Sevilha

01 de Agosto de 2009. Sábado.
Saída 17h (Hora de Espanha)
Chegada 7h

Finalmente íamos partir.

Eu e o Nelson decidimos sair mais cedo do que o previsto para chegar a Algeciras ainda durante o fim-de-semana - é o início de Agosto.

Andávamos há algumas semanas bastante agitados. Vamos fazer uma grande jornada.
O material está já acondicionado nas respectivas mochilas. As máquinas fotográficas do Nelson estão prontas para entrar em acção e os meus caderninhos pretos preparados. O Jeep do Ibrahim, um Land Rover Discovery com um aspecto bastante rodado, já fez a revisão. Esperamos que cumpra a sua parte nesta missão. Contamos com ele.
Para já, eu e o Nelson, depositamos confiança no autocarro branco que abre agora a porta e nos convida a entrar.
Despedimo-nos da Sá e da Jacinta. O autocarro começa a rolar.

Este é o mês de uma enorme multidão de imigrantes marroquinos – já com autorização de residência – regressar, ainda que brevemente, a casa. Regressar, para gozar férias depois de um ano de trabalho nos vários países de acolhimento. O local de embarque é Algeciras. Por isso aí vamos. Não podíamos perder a oportunidade de registar este momento.

A nossa viagem começa, no fundo, pelo fim. Vamos acompanhar, por agora, os que estão já a viver na Europa. Estes, um dia também cruzaram o estreito - com ou sem papéis, com vistos de trabalho ou só de férias ou de outra forma qualquer. Para o caso ainda não interessa.



Sabemos que desde 2000, junto aos portos de embarque de Algeciras e de Tarifa, há enormes marés de pessoas e carros. Voltam à terra onde nasceram, à terra de onde partiram leves na bagagem e carregados de ilusões. Depois, quando foi possível, empacotaram todas as provas do seu sucesso. Verdadeiras ou alugadas.
Decerto contarão estórias. É preciso mostrar que venceram na Europa. É preciso provar que venceram a Europa. Outra vez.
Agora as bagagens são pesadas. Terão lugar nos carros e nas malas para as ilusões?

O autocarro vai devorando lentamente – muito lentamente, para nós – os Km que nos separam do nosso primeiro objectivo.
Entretemo-nos com o que há: uma moçambicana, com uma bonita capulana sobre as costas. Ouviu-me falar do Gurúè e meteu conversa – a Augusta. De Albergaria até Coimbra (onde saiu) falou sem cansaço. Falaria até Sevilha se pudesse. Especialmente (ou sempre?) do seu gosto pelas festas em Maputo.
O Churrasco é a sua perdição. Contou um churrasco em Inglaterra, em casa do seu filho. Dissemo-lhe que íamos a Marrocos. Abriu muito os olhos e replicou: “O melhor churrasco da minha vida”. É divorciada. No fim trocamos telefones e prometemos fazer... um churrasco em Moçambique. Quem nos dera!
Gosto de pessoas com esta preparação física na arte de palavrejar.

Se ao menos, neste autocarro, pudéssemos ver mais que o serpentear da estrada e do êxodo veraneante - só pensamos em migrações, ocupam-nos todo o pensamento, como o churrasco da Augusta.
Se ao menos connosco seguisse um minúsculo grão de areia atraído pelo perfume do regresso, ainda que breve. Atraído pela travessia do estreito. O estreito que Europa e África namoram enciumadamente. Numa atracção fatal. Numa desgastante guerrilha. Desde que o mar lhes rasgou o véu do noivado.

De repente percebemos a força de invocar ao mesmo tempo o grande Alá dos muçulmanos e o grande Deus dos cristãos. Olhando para nós com um sorrisso tímido, com um boné à ciclista, com a pala para trás, pede licença para entrar na nossa história o Hami.

É marroquino. Vive no Porto. Vai para Algeciras. Como num guião, Hami aparece para podermos continuar a nossa viagem. Para eu poder terminar por aqui. Estaremos já em Sevilha. Hami ter-nos-á acompanhado até lá e mais além.

Fica para a próxima.

Estamos juntos!


(Fotografias: Nelson Garrido - Fotojornalista/ Público)

Objectivo Mauritânia

Rastos e restos da imigração clandestina africana e outras impressões.

Equipa: Ibrahim (Investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto - CEAUP);
Maciel (Professor e Investigador do CEAUP)
Miguel (Editor do CEAUP)
Nelson (Fotojornalista de um bem conhecido periódico português: Público)
Percurso programado: Porto, Algeciras, Tânger, Marraquexe, Agadir, Dakla, Nouazibu, Noakchok, fronteira sul da Mauritánia com Senegal, fronteira este da Mauritânia com o
Mali.
Transporte: Caminoneta até Algeciras (Miguel e Nelson)
4x4 – (Ibrahim e Maciel até Algeciras e daí com toda a equipa)
Km programados – Cerca de 10.000