quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Dia 1 - 02 Agosto 2009

Salamaleque (Olá!)

Hoje são, de facto, 5 de Agosto. É meio-dia. O calor aperta, sufocante. Sêco. O corpo suado tinge de humidade a minha pólo. A fronte vai gotejando. Ainda bem que cortei, bem curto, o cabelo. Já não o fazia há muito tempo. Escrevo de Marrakech.

Estou sentado numa esplanada de um tipicamente europeu café - Café La Reférance, em frente ao hipermercado Marajane. Finalmente um momento tranquilo. À sombra. À minha frente, na mesa, um pequeno bule cor de prata repousa numa salva da mesma cor. Dele sai um aroma a menta forte. Encho o copo, elevando o bule. Como vi o Ibrahima fazer ontem em Rabat. Encho outro de água gelada. Um chá no -depois do- deserto. Lembro o filme. Agora é tudo muito diferente. Uma música ligeira marroquina passa no plasma da esplanada. Nada de exótico. Tudo muito
chic. À minha frente, noutra mesa, estão os outros. Bebem chá. O Maciel lê. O Nélson descansa. Não traz as suas máquinas de fotografar. Não há nada aqui para fotografar. O Ibrahim está preocupado. Ao meu lado fala-se marroquino. Expressivo, colorido. As mãos falam mais. Gosto da sonoridade da língua. Gosto das inflexões de tom. Dos erres que saem do fundo do palato.

Escrevo de Marrakech. Chegámos ontem à noite. Hora de jantar. Não deveríamos estar aqui. A nossa estrada já chegou ao Sara Ocidental. À praia de Tin-Tin. A peixada foi já servida. O nosso Land Rover Discovery encontrou outro caminho. De Tangêr a Rabat conduzi eu. De madrugada, depois de esperarmos quas
e duas horas num interminável controlo de papéis e de mercadorias, depois de devagar termos passado o estreito num enorme e lento ferry. A fronteira move-se ao ritmo do barco. Todos esperamos pelo visto de entrada. Fui dos primeiros. Roubando Gibraltar a sua majestade. O meu estreito é agora marroquino.


A bandeira vermelha sacode a estrela verde no mastro. São 14 Km até Tânger (será que Tangerina vem daqui?). Tarik passou por aqui. Provavelmente com os nobres visigodos que o convidaram a instalar-se na Península Ibérica durante quase 700 anos. Tarik está na praia de Tarifa e acena-nos. Veio, desta vez, numa Paterna. Não tem documentos. Desta vez os seus homens não dançam e cantam na praia, enquanto os filhos do assassinado rei dos visigodos foram espreitar, mais a norte, os terrorristas que lhe mataram o pai. Viriam depois ensinar ao mouro o caminho. Como se Tarik não o soubesse. Desde há muito que vem comerciar à Bética, ali pôs-se a sonhar o Al Andaluz.

Em Tânger passam lentamente nos seus carros. O convés vai a abarrotar. Trazem os despojos da batalha. A música é tocada nas buzinas. Alguns impacientes. Matrículas espanholas, francesas, holandesas. Afinal Poitiers é um mito da cristandade. Tarik venceu Rolando e perfuma a europa de kif, de chicha e de suor.

Continuamos a seguir a rota deles, dos imigrantes legais, que agora se vai dividir por Marrocos inteira, ainda que por breves dias e depois de um ano de trabalho. Os ágeis cavalos árabes rolam à nossa frente. Têm matrículas espanholas, francesas e holandesas. O nosso é lusitano. Foi importado, talvez da Alemanha. A matrícula é Portuguesa e começa por K. Talvez tenha sido de um alemão filho de um Sr. Silva. Na Praça Jama Elle Fna todos os cozinheiros das turísticas barracas de sopa, tâmaras e chá se chamam Chefe Silva. Têm outros passaportes com outros nomes. Tantos quantas as nacionalidades dos extasiados turistas ocidentais. No mercado, em breve, se venderão roupas Armani. Mas tradicionais. Armani Hassan. Para meter “ficha” lá em Lisboa. Como antes de nós os ínclitos Infantes. Até que Fernando ficou pendurado de cabeça para baixo, em Fez. “O mouro é que conhecia o deserto”, não é verdade, Sebastião? A batalha dos três reis. Em Ksar el Kibir. Aqui a estação é ainda um pequeno apeadeiro. Filipe II de Espanha mora lá. Já não se ouvem os gritos dos reis. Nem O desejado. Contou-me o Maciel do apeadeiro. Ele que já percorreu Marrocos de autocarro.

O nosso Discovery encontrou outra estrada. Para nos convencer deixou de refrigerar. Está agora num dos milhares de mecânicos marroquinos. Chegamos a 60 à hora. Vínhamos de Sakra al Rhaan. Uma longa fila de vizinhos comerciantes que construiu primeiro uma estrada para depois ver nascer a grande auto-estrada. A ideia, a nossa, era apanhar o caminho de Agadir. A ideia em Sakra era aproveitar a circulação dos que por lá passam. Passam cada vez menos. A pequena vila comercia à sombra da arcada e ao lado da mesquita. A maior parte do tempo sentada à porta. À espera das camionetas
e dos camiões que evitam as portagens. Sakra é sufocante. O mecânico vai-nos desapontando. Almoçamos uma Tagine. Pedimos Brochettes. Quatro. Trouxeram mais. Fizeram bem. A auto-estrada não passa por ali.

Hami confessa-nos em Sevilha que Marrocos está dividida. Os Berberes e os Arrábes (o acento vai bem – Hami fala-nos no seu francês). Os pastores e os agricultores. Nunca se deram bem. Abraão também era pastor. Em outros desertos. Agora já não é só Hami que acompanhamos. Outros se juntaram a ele. Pastores e Agricultores regressam juntos. Separar-se-ão em Tânger. Hami vai para Mekenes, vem do Porto onde trabalha. Rezou ao pôr-do sol, perto de Lisboa, e em Sevilha, ao alvorecer. Pediu-nos, a mim e ao Nélson, para olharmos pelas suas coisas. Desapareceu. Quando voltou a sua fronte vinha suja de terra. Pareceu-me ver o crescente desenhado. As suas cinco malas estavam lá. Os agricultores também. Eram estes que Hami temia?

Em Algeciras as nigerianas contam como atravessaram o estreito, grávidas de muitos meses. Não cedo a escrever ‘grávidas de esperança’. Essa é outra música. Ou será a mesma? Agustina está zangada com o Padre Paterna. Há quatro anos que aguarda os seus documentos. I just want to walk (é como diz work, percebo mais tarde). O pequeno Kelly, seu filho, está às minhas cavalitas. O outro gémeo às do pai. Chegou há dois meses. Primeiro a Melila, vindo de Benim, na Nigéria. Depois a Granada, vindo outra vez de Benim. Mandaram-no de novo à casa partida. Aguardou em Tânger mais do que nós.

Em
Marrekech são 14.09. No Porto também. O mecânico está a acabar. Também eu.

Chokran (Obrigado)


(Fotografias: Nelson Garrido - Fotojornalista/ Público)

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