domingo, 9 de agosto de 2009

Dia 4 - 4 e 5 Agosto 2009

Partida - 16h30m do dia 4/08/2009.
Chegada - 23h50m do dia 5/08/2009.
Aproximadamente 30 horas de viagem.
Percurso - Marrakech – Chichaoua - Taroudannt – Agadir – Tiznit –Tin-Tin – Tarfaya (Cabo Juby) Fronteira com o Sara Ocidental – Aaiun (“Capital” do Sara Ocidental) - Cabo Bojador – Dakhla.

Auto-estrada até Chichaoua. Depois estrada nacional. Em bom estado.

Distância total aproximada – 1600 Km.

(se clicares em cima dos mapas poderás vê-los em tamanho grande e encontrar as cidades referidas no texto)



5 Agosto 2009
16.30

O Land Rover parece finalmente com vontade. Marrakech despede-se. Decidimos recuperar o tempo perdido. O objectivo é chegar à fronteira da Mauritânia. Fazemos cálculos. Devo-me preparar para uma longa jornada.

Acompanhamos o último troço de auto-estrada. Despedimos-nos em Chichaoua. Navegamos para sudoeste. Em direcção ao litoral. Vou sentado atrás. O terreno permanece plano.
Algumas palmeiras enfrentam-se, inclinando-se, dando as boas-vindas. É o que resta vivo de uma casa de campo. As pessoas não. Ruínas. O vento transporta um sol escaldante.

A planície fica para trás. À frente uma sinuosa estrada de montanha. A velocidade diminui. Nas descidas os camiões quase vão parados. Pesados. A brisa da montanha refresca o ar. Lá no alto. O dorso enorme de um camelo aparece. É o Atlas. Apenas um pequeno vislumbre. O Dorso estende-se, enorme, para o interior.
Nas descidas vamos quase parados. Às vezes. A temperatura oscila bastante. Fresco no alto. Inferno, quando as montanhas nos atraem para nos encurralar nos seus vales. São 20h.

Faltam 1100Km para Dakla. Depois a Mauritânia. Fundeamos em Agadir. O ar do mar pressente-se. Não entramos na cidade, preferimos contornar.

Antes, às 9 da manhã, tínhamos comido um bom pequeno almoço. Café com leite, sumo de laranja, croissants. São agora 23h30m. Durante o caminho só líquidos. Só líquidos. O calor tira-nos o apetite. Agora está fresco, é preciso comer. Jantamos outra vez hariri (sopa com grão de bico, muito condimentada) e tagine (um estufado) num café à beira da estrada.

A viagem continua. Continua.

Hoje é Sábado, dia 8. Em Nouadhibu, Mauritânia, revejo as minhas notas de viagem. Nomes e horas. Distâncias. Estamos em casa da mãe do Ibrahima. As minhas notas viajam ainda. Estrada e nós, sempre. Sem verbos.

Volto a abrir o caderninho preto, de capa mole. É noite. O vidro vai aberto. Até Tiznit vi as mais longas rectas de que tenho memória. Estranhamente – agora em Nouadhibu – recordo a estrada da Tocha, na Figueira da Foz. Esta recta é muito maior. Conduzo agora eu. Sinuosa, lenta, a estrada afasta-se do mar. Lá atrás o Maciel e o Ibrahima descansam. A noite vai ser longa. O Nelson acompanha-me. Somos apanhados pelo primeiro controlo policial. La Gendarmerie Royal. Louis de Funes não teve graça. Estes sim. Pedem-nos os passaportes e perguntam para onde vamos. Sente-se a autoridade em Bou-Izakarn. O Sara Ocidental está perto. O povo Saraoui, a Frente Polisário. Os barcos dos pescadores portugueses apresados. Na década de oitenta a televisão a preto e branco mostrava-os, à chegada. Os armadores pagavam o imposto de pesca a Marrocos. A Polisário afirmava a sua soberania. Cobrava o resgate. É o Povo do Sara, o deserto é deles. O País não. A Argélia empurra-os contra Marrocos, enquanto negoceia fronteiras de paz. A Europa observa. No nosso mapa, de 1968, o Sara ainda se chama espanhol. Depois, em 75, o Generalíssimo cede. El Rei retira-se do deserto. Apanha o ferry em Tânger. Guarda Ceuta e Mellila no manto. Marrocos avança para o deserto. Primeiro com o exército, agora com os fundos de desenvolvimento do mundo “civilizado”. O Sara vai sendo moldado à marroquina. Colonatos, como na Faixa de Gaza. O Povo é independente mas só no Sara de papel.Como Timor. Nos mapas marroquinos nem no papel. É quimera da Grande Marrocos. A República Islâmica da Mauritânia quis também um pedaço mais do Sara. O Presidente Dada caminha com o dedo indicador e crava um pionês verde e amarelo no papel. Da Argélia, das bases da Poliosário, saiu uma expedição de boas-vindas. Cruzam as dunas. O Ibrahima estava na escola, em Nouakchott, a capital. As bombas cravam-se na terra dos mouros. Não no papel. A Mauritânia, afinal, não tem fronteiras com o Sara Ocidental. Afinal são todos peregrinos do grande mar de areia. Mouros e Saraouis são irmãos. Dada retira-se. Afinal a Argélia é perto da capital. Basta saber ler os montículos de pedra que marcam os trilhos. Agora marcam as minas.

De repente, um rasto de sangue marca a estrada. Abro mais os olhos. Uma silhueta está abraçada ao asfalto. Já não dá para travar. Alargo o rodado do Land Rover e passo. Sem lhe tocar. Os outros dois dormem. Eu e o Nelson respiramos de alívio. Era um burro atropelado por um camião. São as dezenas, os camiões. A estrada é estreita, duplico a atenção.

Enfim Tin-Tin. Um dia e uma noite depois do previsto. Novo controlo policial. O mesmo questionário. Sim, somos todos “Professeurs”, o Ibrahima é “Biologist”. O Nelson perdeu, por instantes, a carteira profissional. As máquinas de fotografar não.

Aconchego-me na bagageira do Land Rover – aqui em Nouadhibou, Omar, o empregado doméstico da família de Ibrahima, cola-se às minhas costas. Está curioso. Quando escrevo “Omar” desliza sem ruído para dentro de casa. Antes que fuja levanto a cabeça do teclado e sorrio-lhe. Sorri também. Largo e simpático. Terá percebido? (o meu primeiro ponto de interrogação escrito. Os outros vão-se acumulando).

Aconchego-me na bagageira do Land Rover, as botas castanhas e amarelas colam-se a um vidro lateral. Agora só vejo um céu cinzento. Penso em escrever. Acabo a ver o “Grand Torino”. Mas não continuadamente. As barreiras policiais são cada vez mais intensas. Conto cinco. O filme ainda vai a meio. Sempre que abrandamos fecho o computador e finjo dormir. Ouço as perguntas mas não vejo os Louis de Funes. Mais à frente começa a dança do passaporte. Passo-o ao Maciel. Tento dormir.

Acordo com o barulho das portas a bater. São 8h10m. De um lado está o mar, a ocidente, e as Canárias. Do outro algumas dunas. A luz é filtrada pela fina camada de nevoeiro da madrugada. A falésia é ingreme e recortada. Gil Eanes acena, ao largo. Passará? Mas alguém há-de ficar. Ficou um. No Bojador. A conhecer os mouros do deserto. Recolhe-lo-iam um ano mais tarde. No meu caderninho está escrito “8.10. Deserto. Finalmente. J”. Mas é só um cheirinho.

Chegamos pouco depois a Tarfaya, no Cabo Juby. Pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga. É uma pequena localidade piscatória. O ponto mais próximo das Canárias. Fuerteventura estará a 100 Km para nordoeste. Las Palmas um pouco mais além. Na praia de Maspalomas, na Grande Canária, há corpos deitados, inertes. Desidratados da passagem. Corpos negros. A Cruz Vermelha. Passou na RTP, há poucos anos. Passaram por aqui? (o segundo).

Jilabas e turbantes amarrados em torno da cabeça. Bigodes pretos, de olhar fundo e amarelo. Os pescadores de Tarfaya bebem chá de menta. Que mais poderia ser? À praia chega Salem. Fecha o olho direito para focar. É miope. Não tem dinheiro para óculos. Nem para livros. Tem, isso tem, uma pose calma de intelectual e treze anos. Aqui em Nouadhibou a noite chega. Sente-se o vento do deserto. Está ali em frente, depois do caminho de ferro. O caminho do ferro. Passa vazio, enorme. Saiu do porto, na zona de Cansados. Dirige-se para Zuarate. Na volta traz minério. Ferro. A França colonial talhou um pouco mais de terra para dominar a mina. Agora, junto com o peixe, enche os bolsos dos mouros brancos. A elite da Mauritânia. O golpista é agora presidente. Chama-se Mohamed-Ould-Abdel-Aziz. Ould significa “filho de”. Todos os mouros, brancos e pretos são Ould. Os brancos eram gentes do deserto, gostavam de viver em grandes tendas brancas. Percorriam todo o Sara para comerciar. Faziam razias, arrebanhando escravos. A escravatura foi abolida em 1982. Os escravos vinham de uma África mais negra. Até 1982. Ficaram tanto tempo com os brancos – Hassani- que se transformaram em mouros. Só que pretos. Os outros, como a família de Ibrahima, são Al Pular. Nós dizemos Fula. São da grande tribo de pastores. A sua gente seguiu as pastagens da Costa do Marfim, do Senegal até ao Niger e mais além. São Africanos Negros. O primeiro presidente Al Pular da Mauritânia terá honras de Obama. Na década de 90, os mouros chegaram à conclusão que já havia Al Pular em excesso no exército. Despediram-nos. Em Terhazza, no centro do Sara, o Oásis tingiu-se de vermelho. Os pastores cruzaram o Senegal. Aguardam em tendas brancas de refugiados. Na Televisão, Aziz discursa, em diferido, no Estádio Olímpico de Nouakchott. Os Al Pular podem voltar. A justiça mundial aguarda ainda que alguns generais mouros cruzem o mar. Clandestinos.

Salam está ainda na praia. Fala-nos, porque lhe perguntamos e é um diplomata, dos imigrantes clandestinos. Uma vez viu sair de Tarfaya um barco para as Canárias. Olha-nos complacente. Nunca os viu voltar. Ou chegaram às Canárias ou morreram pelo caminho. Mas não levavam Nigerianos ou Malianos. Só marroquinos.
Em Tarfaya o principezinho está sentado numa pequena miniatura do avião postal. A rota do correio de Exupery passava por aqui. Há um museu que o atesta. Compramos posters. O meu vai ficar bem na parede da casa nova. Mas só quando voltar.

Salem quer ser jornalista. É muito esperto. Vimo-lo a primeira vez quando tomamos o pequeno almoço. Foi ele, num francês muito correcto, quem nos deu as boas-vindas a Tarfaya. No fim rasguei as páginas já escritas de um outro caderninho preto – estava escrito “entrevista ao Padre Pateira. Algeciras. 02 de Agosto” – e dei-lho. Juntamente com um lápis. Um Kit jornalista. O Nelson não lhe quis dar qualquer das suas máquinas.
Daqui até ao Bojador começo a sentir-me muito cansado. Exausto. Durmo o tempo todo. Ao Bojador chego um pouco doente. Começa a Dança do Imodium. Acompanha a dos passaportes.

Chego a Dakhla exausto. São 23h50m. Dia 6 de Agosto. Tomo um banho quente no Cyber Hotel. Duas camas com um cobertor cinzento muito usado. Os lençóis não inspiram confiança. O marroquino de serviço não se dá por vencido. Dormirei embrulhado na manta do Ibraihma. Durmo embrulhado na TAP. Vôo para outras paragens. Amanhã já estarei bem. Incha Alá. Resmunguei como um rapaz mimado todo o caminho até aqui.

De manhã partimos. A Mauritânia é perto. Controlo após controlo, chegamos à fronteira. Atravessamos um cemitério de carros abandonados, numa estrada de trilho marcado pela lixeira. O exército Mauritânio está a almoçar. Aguardamos. Passamos.

Acabou o passeio. Por fim descansamos. E eu também.

1 comentário:

  1. A "História" vê-se em ti! Para além de tudo, impressiona-me o facto de não ter sido ela a dominar-te mas tu a dominá-la, de uma forma tão intensa que a interpelas a cada instante com diálogo, confronto, pedido de contas, provocações... É bom ler-te! Levas-nos contigo!
    Até já já...

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